As máquinas chegavam, impiedosas e devoradoras. Esventravam cada recanto, tornando-o seu. Homens, em labuta constante, afadigavam-se, num vaivém frenético. As ferramentas, estridentes e poderosas, eram as suas armas. Aos poucos, o puzzle agigantava-se e o verde era agora uma miragem. A verticalidade tomava conta do espaço. Modernidade envidraçada, num bulício constante. Assistíamos, impotentes, ao mundo do avesso e ao começo de uma nova era. E os dias simples na nossa casa, que sempre desafiara a floresta, acabaram.
269 – excerto de MFS
Não acreditava no que ouvia, não acreditava. A história serpenteava, célere, pela pequena vila. Ali, todos se conheciam, desde tempos imemoriais. Nada do que acontecia ficava entre paredes. Em cada lugar, havia uma nova versão. O cão do Francisco matara o dono. O Francisco matara o seu próprio cão. O Francisco e o cão tinham morrido. O episódio ganhava a dimensão de tragédia. Acorreu, chorosa, a casa dos dois amigos. Temerosa, leu o bilhete: “Partimos para férias.”
273 – 11x7 com frase inicial dada
Covil de libertinos, a aldeia espraiava-se, minúscula, no sopé da montanha. Um ponto que se desenhava no horizonte. A protegê-la, a floresta, densa e escura, era um baluarte contra os invasores. Ali, a liberdade era rainha e a responsabilidade uma miragem por burilar. Na lembrança de alguns brilhava, ainda, o dia da mudança. Sem peias, vagarosamente, desfrutavam da essência que os rodeava. Outros, contudo, a melancolia no olhar, sentiam-se sós e ambicionavam partir para outro lugar. Bipolaridades.
271 – palavras com L+B+R
Ana chegava cedo. A mesa, junto à janela, estava, quase sempre, disponível. Era um posto de observação privilegiado. O olhar sobrevoava toda a sala e detinha-se, demoradamente, no centro. Aqui, estava o tema. Tropel em correrias coloridas e gritinhos estridentes enchiam todo o espaço. Algaravia desconexa, própria da idade, e um atropelo de vozes, desembocavam, repetidamente, em finas gargalhadas. Irrequietude. Vigiava a ginástica comportamental das crianças, pois o livro que estava a escrever ainda ia a meio.
276 – A ginástica comportamental das crianças
No dia em que o caldo se entornou, tudo foi diferente. Posicionados, os dois, frente a frente, medindo-se, eriçados, coléricos e desafiantes. Resgataram memórias da amizade que os unira, de um tempo antigo. Desfiaram saudades de episódios vividos em conjunto que, subitamente, se esbateram. Não voltariam a percorrer os mesmos espaços nem a partilhar tropelias. No ar, perpassava o odor a desgraça, ofuscando o passado feliz. Os dois gatos, que agora eram inimigos, iniciaram uma luta impetuosa.
267 – o caldo entornado
A conferência estava confirmada havia já algum tempo. Seria o momento alto da confraternização que, anualmente, reunia os melhores. A eloquência era o seu ponto forte e tinha-se preparado para o confronto com os outros oradores. Não havia lugar a desconforto. Francesca sabia que carregava muito lastro. Cada palavra, ponderada e dissecada, perduraria, certamente, depois da sua passagem. Era uma situação que acontecia com frequência. Porém, chegado o momento, saiu da sala, visivelmente perturbada. Esquecera o discurso.
274 – 7 palavras com CFRN
Textos de Zelinda Baião, 55 anos, Linda-a-Velha
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